segunda-feira, 25 de março de 2013

Direito à boa administração.




                No quadro do poder administrativo e dos princípios que o desenvolvem, coloca-se a questão de saber se o particular tem um efectivo direito à boa administração (e um correlativo dever da Administração Pública), e, havendo esse direito, saber qual é o seu contéudo e natureza, e por fim, se ele é sindicável.

                Esta questão foi evoluindo ao longo do tempo, começando em Portugal no Estado Novo, no qual se demarcava uma divergência doutrinária entre os professores Professor Marcello Caetano, Rogério Soares e André Gonçalves Pereira; uma questão unânime desde a década de 90 , tratada de diversas perspectivas, questão que por fim a Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia veio pôr um termo em 2000. 

                Começando pela década de 70, foi largamente defendida com grande rigor pelo Professor Rogério Soares. Como corolário do dever da prossecução do interesse público, refere o autor que a Administração não está somente obrigada a actuar, mas a actuar de certa maneira. Isto é, sem prejuízo dos princípios que regem a Administração, esta tem de proceder a uma “satisfação substancial” da necessidade pública em causa, não somente uma “satisfação formal” desse dever de prossecuçaõ do interesse público. O dever de administrar evolui então para o dever de boa administraçãp – administrar não seria só a escolha meios a alocar a um fim concreto, de acordo com o interesse público em causa, mas dispô-los de um certo modo, disposição que não poderá ser indiferente, mas aquela que satisfazer integralmente o fim visado. Faz então o autor uma equiparação – “boa administração equivale a óptima administração”. 

                Retomando a distinção entre actuação administrativa com poderes discricionários e vinculados, na primeira temos uma remissão para regras não-jurídicas, no qual o legislador confia que o sujeito administrativo sabe fazer delas um uso proveitoso, de forma a melhor preencher o interesse público. Refere o Professor que esta concessão de poderes discricionários trata-se de “individualizar a directiva para o caso concreto”, em seguida pô-la em acção.  Por outro lado, pode o legislador indicar no preceito o conteúdo do acto – estaríamos perante o exercício de poderes vinculados (nunca absolutos, também no caso do exercício de poderes discrionários). Nestes casos, o dever de boa administração dissolver-se-ia para dar lugar a apenas um dever de administração, uma vez que o legislador ´que seria o bom administrador, uma vez que já determinou a melhor solução para a necessidade pública em causa, e somente conferiu à entidade administrativa o modo de a satisfazer.
                O dever de boa administração encontra-se então mais marcado quando a Administração Pública age com poderes discricionários – ou porque encontra uma norma interna que lhe sugere o caminho a seguir, ou porque tem de recorrer a outras áreas científicas ou ainda noutros casos recorrer a standards jurídico-sociais, a conceitos largamente indeterminados ou aos precedentes. Depois de ter tomado em conta todos os elementos necessários é que a sua escolha pode ser a única que satisfará cabalmente o interesse público substancial. 

                Estabelecido então a existência de um dever de boa administração, importa saber a sua natureza. Refere Rogério Soares que se trata de um verdadeiro dever jurídico, de uma situação jurídica passiva, uma vez que o legislador impõe uma conduta de adequação ao fim legal – o interesse público-, estando a Administração, além de obrigada a prosseguir esse fim legal, a prosseguí-lo de determinada maneira. 

                Pergunta-se agora agora pela sindicabilidade do mérito da prática administrativa, e consequentemente, a invalidade por vícios de mérito. A Professor Rogério Soares constrói a invalidade dos actos proferidos pela Administração Pública com base na sua legitimidade da sua actuação, visto que um comportamento incorrecto carece de uma razão suficiente de ser para que explique o sacrifício do interesse público em causa, e por isso se torna ilegítimo, ou injustificado. Dentro desta ilegitimidade encontram-se então a ilegalidade e os vícios de mérito. 

Mas, uma vez que as reacções que a ilegitimidade podia provocar sobre a consistência dos actos nem sempre são da mesma natureza, podendo nalguns casos influir decididamente sobre a própria vida do acto e noutros casos ser apenas capaz de originar uma especial qualificação de desfavor, com somente efeitos laterais, não impedindo o acto de fazer o seu papel. O primeiro caso corresponde à invalidade e o segundo à mera irregularidade. Pergunta-se então agora saber se o interesse público em vista com a remissão do agente para normas não jurídicas exige, quando violado, um inutilidade do acto ou se contenta-se com a imposição de limitações externas, sem prejudicar a consistência e estabilidade do acto administrativo. Refere o professor que o ordenamento jurídico só admite invalidade do primeiro tipo – a nulidade – nos casos mais gravosos, e sendo uma sanção muito severa, o legislador só as consigna em normas jurídicas, (razão a que levou o legislador, mais tarde, a estabelecer uma tipicidade das causas de nulidade, no artigo 133º (?) do CPA). Desta maneira, a inobservância de normas não-jurídicas, no exercício de poderes discricionários, pode desencadear a anulabilidade do acto administrativo, desvalor menos grave. 

Numa posição discordante, encontramos André Salgado de Matos, ao dizer que não é admissível uma invalidade por vícios de mérito. Este entendimento decorre de uma noção de ilegitimidade diferente daquela do Professor Rogério Soares – enquanto que este último enquadra na ilegitimidade a ilegalidade e a irregularidade, o primeiro distingue-os, equiparando a ilegitimidade à ilegalidade. Quer as duas formas de invalidade, geradas por vícios de mérito não seriam admitidas, como decorria do artigo 815º do Código Administrativo de 1940 (hoje artigo 3º/1 do CPTA), deixando para a Administração Púlbico a exclusividade de tal apreciação. Este autor rebate ainda o Professor Rogério Soares quando diz que este criou um conceito novo Direito português, o mérito, e enquadrou-o na ilegitimidade (ficando então com um sentido absolutamente idêntico ao do Direito italiano, único ordenamento jurídico que permite expressamente a invalidade por vícios de mérito), ao passo que a doutrina e a jurisprudência portuguesas já tinham vindo a utilizar a mesma ideia através da conveniência ou oportunidade, conceitos introduzidos nos preceitos indicados.

Na doutrina mais recente a existência do dever de boa administração é unânime. Refere Freitas do Amaral que tal dever existe e está constitucionalmente protegido, uma vez que decorre do princípio da prossecução do interesse público, que tem consagração constitucional. Rebelo de Sousa refere ainda que se trata de um princípio de mérito ou de eficiência, previstos no artigo 81º da CRP para o sector público empresarial ou económico, ampliando para os restantes sectores  pelo artigo 10º do CPA. O princípio da boa administração não decorreria do princípio da prossecução do interesse público, mas relaciona-se com este, “já que respeita ao “modus faciendi” para tal prossecução, ou seja, reporta-se ao conteúdo do acto”, e com o princípio da desburocratização da Administração Pública, “por este recair sobre meios indispensáveis à daquela efectivação”. Reforçam ambos autores a existência desse dever em diversas expressões jurídicas – os recursos graciosos, que podem ter por fundamento vícios de mérito; a responsabilidade disciplinar dos funcionários públicos, por violação de deveres de zelo e aplicação, afloramentos do dever de boa administração, e ainda a determinação da culpa da Administração Pública na responsabilidade civil, através da apreciação do grau de diligência e zelo na prática do acto.

Estabelecida então a existência de um dever de boa administração, importa saber qual o seu conteúdo. Refere Rogério Soares que se trata de um verdadeiro dever jurídico, de uma situação jurídica passiva, uma vez que o legislador impõe uma conduta de adequação ao fim legal – o interesse público - estando a Administração, além de obrigada a prosseguir esse fim legal, a prossegui-lo de determinada maneira. O Professor Freitas do Amaral refere que se trata de um princípio jurídico imperfeito, uma vez que não implica uma sanção jurisdicional, visto que só é possível a fiscalização contenciosa da prática administrativa por vícios de legalidade, e não de mérito. O Professor Marcelo Rebelo de Sousa refere a boa administração como um princípio jurídico.

Importa agora saber a sua fonte. Para alguns autores, o princípio é apenas um princípio lógico ou técnico, mas que se torna num princípio jurídico quando de svolve num autêntico preceito jurídico quando ao agente se impõe a obrigação de agir. Para outra doutrina, o dever de boa administração seria um preceito jurídico que impõe agir segundo a oportunidade. Para outros ainda, estar-se-ia perante um princípio constitucional ou apenas um princípio geral de Direito Administrativo. Finalmente, para outros, seria ainda um princípio geral de Direito. Para o autor em causa, o dever de boa administração deve ser procurado nos preceitos jurídicos concretos que concedem poderes ao agente administrativo. É nesse momento da concessão de poderes que é imposto um dever – o sujeito administrativo recebe os poderes na exacta medida em que eles se tornam necessários para a satisfação daquele interesse público que o legislador pretende tutelar. Segundo o autor, o dever de boa administração dependeria então do fim específico em causa, e da actuação de certo modo. É preciso atender ao facto de na Constituição de 1933 não resultar nenhum princípio de prossecução do interesse público para o autor defender tal solução. Quanto à posição de Freitas do Amaral, referida anteriormente, este propugna pela via constitucional, juntamente com Rebelo de Sousa.

Filipe Rodrigues
PS: actualizarei mais tarde com a posição do Professor Vasco.