No quadro do poder administrativo e dos princípios
que o desenvolvem, coloca-se a questão de saber se o particular tem um efectivo
direito à boa administração (e um correlativo dever da
Administração Pública), e, havendo esse direito, saber qual é o seu contéudo e
natureza, e por fim, se ele é sindicável.
Esta questão foi evoluindo ao longo do tempo,
começando em Portugal no Estado Novo, no qual se demarcava uma divergência
doutrinária entre os professores Professor Marcello Caetano, Rogério Soares e
André Gonçalves Pereira; uma questão unânime desde a década de 90 , tratada de
diversas perspectivas, questão que por fim a Carta dos Direitos Fundamentais da
União Europeia veio pôr um termo em 2000.
Começando pela década de 70, foi largamente defendida
com grande rigor pelo Professor Rogério Soares. Como corolário do dever da
prossecução do interesse público, refere o autor que a Administração não está
somente obrigada a actuar, mas a actuar de certa maneira. Isto é, sem prejuízo
dos princípios que regem a Administração, esta tem de proceder a uma
“satisfação substancial” da necessidade pública em causa, não somente uma
“satisfação formal” desse dever de prossecuçaõ do interesse público. O dever de
administrar evolui então para o dever de boa administraçãp – administrar não
seria só a escolha meios a alocar a um fim concreto, de acordo com o interesse
público em causa, mas dispô-los de um certo modo, disposição que não poderá ser
indiferente, mas aquela que satisfazer integralmente o fim visado. Faz então o
autor uma equiparação – “boa administração equivale a óptima administração”.
Retomando a distinção entre actuação administrativa
com poderes discricionários e vinculados, na primeira temos uma remissão para
regras não-jurídicas, no qual o legislador confia que o sujeito administrativo
sabe fazer delas um uso proveitoso, de forma a melhor preencher o interesse
público. Refere o Professor que esta concessão de poderes discricionários
trata-se de “individualizar a directiva para o caso concreto”, em seguida pô-la
em acção. Por outro lado, pode o
legislador indicar no preceito o conteúdo do acto – estaríamos perante o
exercício de poderes vinculados (nunca absolutos, também no caso do exercício
de poderes discrionários). Nestes casos, o dever de boa administração
dissolver-se-ia para dar lugar a apenas um dever de administração, uma vez que
o legislador ´que seria o bom administrador, uma vez que já determinou a melhor
solução para a necessidade pública em causa, e somente conferiu à entidade
administrativa o modo de a satisfazer.
O dever de boa administração encontra-se então mais
marcado quando a Administração Pública age com poderes discricionários – ou
porque encontra uma norma interna que lhe sugere o caminho a seguir, ou porque
tem de recorrer a outras áreas científicas ou ainda noutros casos recorrer a
standards jurídico-sociais, a conceitos largamente indeterminados ou aos
precedentes. Depois de ter tomado em conta todos os elementos necessários é que
a sua escolha pode ser a única que satisfará cabalmente o interesse público
substancial.
Estabelecido então a existência de um dever de boa
administração, importa saber a sua natureza. Refere Rogério Soares que se trata
de um verdadeiro dever jurídico, de uma situação jurídica passiva, uma vez que
o legislador impõe uma conduta de adequação ao fim legal – o interesse
público-, estando a Administração, além de obrigada a prosseguir esse fim
legal, a prosseguí-lo de determinada maneira.
Pergunta-se agora agora pela sindicabilidade do
mérito da prática administrativa, e consequentemente, a invalidade por vícios
de mérito. A Professor Rogério Soares constrói a invalidade dos actos
proferidos pela Administração Pública com base na sua legitimidade da sua
actuação, visto que um comportamento incorrecto carece de uma razão suficiente
de ser para que explique o sacrifício do interesse público em causa, e por isso
se torna ilegítimo, ou injustificado. Dentro desta ilegitimidade encontram-se
então a ilegalidade e os vícios de mérito.
Mas, uma vez que
as reacções que a ilegitimidade podia provocar sobre a consistência dos actos
nem sempre são da mesma natureza, podendo nalguns casos influir decididamente
sobre a própria vida do acto e noutros casos ser apenas capaz de originar uma
especial qualificação de desfavor, com somente efeitos laterais, não impedindo
o acto de fazer o seu papel. O primeiro caso corresponde à invalidade e o
segundo à mera irregularidade. Pergunta-se então agora saber se o interesse
público em vista com a remissão do agente para normas não jurídicas exige,
quando violado, um inutilidade do acto ou se contenta-se com a imposição de
limitações externas, sem prejudicar a consistência e estabilidade do acto
administrativo. Refere o professor que o ordenamento jurídico só admite
invalidade do primeiro tipo – a nulidade – nos casos mais gravosos, e sendo uma
sanção muito severa, o legislador só as consigna em normas jurídicas, (razão a
que levou o legislador, mais tarde, a estabelecer uma tipicidade das causas de
nulidade, no artigo 133º (?) do CPA). Desta maneira, a inobservância de normas
não-jurídicas, no exercício de poderes discricionários, pode desencadear a
anulabilidade do acto administrativo, desvalor menos grave.
Numa posição
discordante, encontramos André Salgado de Matos, ao dizer que não é admissível
uma invalidade por vícios de mérito. Este entendimento decorre de uma noção de
ilegitimidade diferente daquela do Professor Rogério Soares – enquanto que este
último enquadra na ilegitimidade a ilegalidade e a irregularidade, o primeiro
distingue-os, equiparando a ilegitimidade à ilegalidade. Quer as duas formas de
invalidade, geradas por vícios de mérito não seriam admitidas, como decorria do
artigo 815º do Código Administrativo de 1940 (hoje artigo 3º/1 do CPTA),
deixando para a Administração Púlbico a exclusividade de tal apreciação. Este
autor rebate ainda o Professor Rogério Soares quando diz que este criou um
conceito novo Direito português, o mérito, e enquadrou-o na ilegitimidade
(ficando então com um sentido absolutamente idêntico ao do Direito italiano,
único ordenamento jurídico que permite expressamente a invalidade por vícios de
mérito), ao passo que a doutrina e a jurisprudência portuguesas já tinham vindo
a utilizar a mesma ideia através da conveniência ou oportunidade, conceitos
introduzidos nos preceitos indicados.
Na doutrina mais
recente a existência do dever de boa administração é unânime. Refere Freitas do
Amaral que tal dever existe e está constitucionalmente protegido, uma vez que
decorre do princípio da prossecução do interesse público, que tem consagração
constitucional. Rebelo de Sousa refere ainda que se trata de um princípio de
mérito ou de eficiência, previstos no artigo 81º da CRP para o sector público
empresarial ou económico, ampliando para os restantes sectores pelo artigo 10º do CPA. O princípio da boa
administração não decorreria do princípio da prossecução do interesse público,
mas relaciona-se com este, “já que respeita ao “modus faciendi” para tal
prossecução, ou seja, reporta-se ao conteúdo do acto”, e com o princípio da
desburocratização da Administração Pública, “por este recair sobre meios
indispensáveis à daquela efectivação”. Reforçam ambos autores a existência
desse dever em diversas expressões jurídicas – os recursos graciosos, que podem
ter por fundamento vícios de mérito; a responsabilidade disciplinar dos
funcionários públicos, por violação de deveres de zelo e aplicação,
afloramentos do dever de boa administração, e ainda a determinação da culpa da
Administração Pública na responsabilidade civil, através da apreciação do grau
de diligência e zelo na prática do acto.
Estabelecida
então a existência de um dever de boa administração, importa saber qual o seu conteúdo.
Refere Rogério Soares que se trata de um verdadeiro dever jurídico, de uma
situação jurídica passiva, uma vez que o legislador impõe uma conduta de
adequação ao fim legal – o interesse público - estando a Administração, além de
obrigada a prosseguir esse fim legal, a prossegui-lo de determinada maneira. O
Professor Freitas do Amaral refere que se trata de um princípio jurídico
imperfeito, uma vez que não implica uma sanção jurisdicional, visto que só é
possível a fiscalização contenciosa da prática administrativa por vícios de
legalidade, e não de mérito. O Professor Marcelo Rebelo de Sousa refere a boa
administração como um princípio jurídico.
Importa agora
saber a sua fonte. Para alguns autores, o princípio é apenas um princípio
lógico ou técnico, mas que se torna num princípio jurídico quando de svolve num
autêntico preceito jurídico quando ao agente se impõe a obrigação de agir. Para
outra doutrina, o dever de boa administração seria um preceito jurídico que
impõe agir segundo a oportunidade. Para outros ainda, estar-se-ia perante um
princípio constitucional ou apenas um princípio geral de Direito
Administrativo. Finalmente, para outros, seria ainda um princípio geral de
Direito. Para o autor em causa, o dever de boa administração deve ser procurado
nos preceitos jurídicos concretos que concedem poderes ao agente
administrativo. É nesse momento da concessão de poderes que é imposto um dever
– o sujeito administrativo recebe os poderes na exacta medida em que eles se
tornam necessários para a satisfação daquele interesse público que o legislador
pretende tutelar. Segundo o autor, o dever de boa administração dependeria
então do fim específico em causa, e da actuação de certo modo. É preciso
atender ao facto de na Constituição de 1933 não resultar nenhum princípio de
prossecução do interesse público para o autor defender tal solução. Quanto à
posição de Freitas do Amaral, referida anteriormente, este propugna pela via
constitucional, juntamente com Rebelo de Sousa.
Filipe Rodrigues
PS: actualizarei mais tarde com a posição do Professor Vasco.