A Administração Pública está subordinada à
lei – ao princípio da legalidade. Desconforme aos nossos tempos estaria o
contrário, atendendo ao Estado de Direito no qual vivemos.
Mas de que forma opera esta vinculação dos
actos administrativos? São os agentes meros concretizadores do que é estipulado pela
lei, ou são antes livres de deixar o seu cunho em cada acto praticado?
Esse “cunho” é denominado
discricionariedade. Há, então, duas coisas que cumpre, a priori, referir: em
primeiro lugar, os actos não são todos regulados da mesma forma – uns mais
precisamente, outros menos; em segundo, não há actos plenamente discricionários
(sob pena de cairmos, não na discricionariedade, mas na arbitrariedade) nem
actos plenamente vinculados – todo o acto administrativo tem algo de
discricionário e algo de vinculativo.
A título exemplificativo, mesmo um acto que
concretize a atribuição de pensões a cidadãos desempregados com x anos de
efectividade de funções em qualquer profissão; que preencham, para além deste,
os requisitos y w e z; em que o valor da pensão está perentoriamente fixado num
quadro, em função do salário anteriormente auferido, tem algo de
discricionário. O quê? O prazo. O agente administrativo pode escolher, dentro
do limite fixado, o momento e o dia em que é consumado o seu acto: aqui, a
discricionariedade é mínima mas existe.
Em relação ao contrário, mesmo um acto
extremamente discricionário, tal como a apreciação, através de um estudo de
impacto ambiental, feito por um engenheiro de câmara municipal, afim de
autorizar ou não a construção, por exemplo, de uma casa, em determinado sítio,
tem várias vinculações. Ainda que não tenha directrizes na lei (limite
discricionário propriamente dito – o limite legal), há também a
auto-vinculação: quando a Administração elabora, por exemplo, um regulamento
para obrigar as decisões seguintes em determinada matéria a serem tomadas
atendendo, obrigatoriamente, a determinados factos, ou a serem tomadas de certa
forma quando verificadas algumas circunstâncias, limitando assim a
discricionariedade. Acresce ainda o princípio da legalidade e os princípios
constitucionais aos quais estão obrigados os agentes administrativos.
Feita esta breve introdução, há que comentar
a divisão em torno desta questão: as correntes garantísticas não gostam
naturalmente desta chamada margem de livre apreciação (a qual o Prof. Vasco
Pereira da Silva repudia, alegando não ser livre em razão de vários argumentos,
entre os quais se incluem as vinculações que apontei supra), considerando que
constitui uma insegurança para o particular e para a prossecução do interesse
público – não sustentam viável, naturalmente, a abolição da discricionariedade
mas consideram-na um “mal necessário”, que quanto menor for, melhor será para
todos; já outras opiniões vão no seguinte sentido: Rogério Soares – as leis “não
podem ser a figuração abstracta, até ao milímetro, do que irá ser cada um dos
actos administrativos, que apenas lhe acrescentam tempo, lugar e destinatários
concretos; não podem ser leis-acto-administrativo-feito-nas-nuvens, à espera de
que o administrador as puxe à Terra. Nestes novos domínios, o papel da lei é o
de ser um instrumento director e ordenador duma decisão que cabe ao 2º poder”;
Vieira de Andrade – “não é um mal necessário que deva ser reduzido ao mínimo,
antes desempenha um papel positivo e indispensável, quer para a realização do
interesse público, quer para a defesa adequada dos interesses dos particulares”.
Sou plenamente a favor desta segunda
corrente. Considero a margem discricionária um bem e não um mal.
Em primeiro, o interesse público, a
garantia do direito dos particulares, a solução mais justa, tem que ser aferida
caso a caso. Um controlo maior da lei, em relação a actos que tenham que ser,
forçosamente, bastante discricionários, não traria a segurança, antes a
insegurança proporcionada pelas naturais diferenças que diferentes situações acarretam.
Haveria a certeza de que as decisões seriam obrigadas a ser tomadas sempre num
determinado sentido sim, mas isto substituiria aquilo que são decisões
conformes à prossecução do interesse público por decisões simplesmente
conformes à lei.
Em segundo lugar, julgo estar, à partida,
muito mais apto a tomar a correcta decisão o agente administrativo que trabalha
correntemente em determinada área (por exemplo um arquitecto, em relação a
atribuir autorizações de construção) do que o legislador, o que é reforçado com
o facto de, na função pública, ser habitual a existência de carreiras longas.
Antes de mais, devido ao facto de o despedimento ser uma impossibilidade legal.
Em terceiro, a Administração merece crédito,
sendo o que muitas vezes melhor funciona. Por exemplo, na Itália, citando o
Prof. Vasco Pereira da Silva, “é a única coisa que funciona”.
Em quarto, existem
meios de controlo do exercício administrativo. O que, na minha opinião,
legitima a atribuição desta “confiança” à Administração Pública – não deixa que
haja arbitrariedade.
Concluindo: julgo então que, não só a
discricionariedade não deve ser restringida tanto quanto possível, como talvez
haja áreas nas quais fosse benéfico ampliá-la (nas quais seja sensato e faça
sentido, como é lógico). Deve-se não só zelar pela segurança, mas também ter em
conta o facto de, por vezes, demasiada exigência legislativa poder asfixiar o
trabalho de certos agentes, boicotando a qualidade de certas decisões.
Manuel
Leston Bandeira, nº 21475
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