sábado, 18 de maio de 2013

A Discricionariedade



   A Administração Pública está subordinada à lei – ao princípio da legalidade. Desconforme aos nossos tempos estaria o contrário, atendendo ao Estado de Direito no qual vivemos.
   
   Mas de que forma opera esta vinculação dos actos administrativos? São os agentes  meros concretizadores do que é estipulado pela lei, ou são antes livres de deixar o seu cunho em cada acto praticado?
   
   Esse “cunho” é denominado discricionariedade. Há, então, duas coisas que cumpre, a priori, referir: em primeiro lugar, os actos não são todos regulados da mesma forma – uns mais precisamente, outros menos; em segundo, não há actos plenamente discricionários (sob pena de cairmos, não na discricionariedade, mas na arbitrariedade) nem actos plenamente vinculados – todo o acto administrativo tem algo de discricionário e algo de vinculativo.
   
   A título exemplificativo, mesmo um acto que concretize a atribuição de pensões a cidadãos desempregados com x anos de efectividade de funções em qualquer profissão; que preencham, para além deste, os requisitos y w e z; em que o valor da pensão está perentoriamente fixado num quadro, em função do salário anteriormente auferido, tem algo de discricionário. O quê? O prazo. O agente administrativo pode escolher, dentro do limite fixado, o momento e o dia em que é consumado o seu acto: aqui, a discricionariedade é mínima mas existe.
   
   Em relação ao contrário, mesmo um acto extremamente discricionário, tal como a apreciação, através de um estudo de impacto ambiental, feito por um engenheiro de câmara municipal, afim de autorizar ou não a construção, por exemplo, de uma casa, em determinado sítio, tem várias vinculações. Ainda que não tenha directrizes na lei (limite discricionário propriamente dito – o limite legal), há também a auto-vinculação: quando a Administração elabora, por exemplo, um regulamento para obrigar as decisões seguintes em determinada matéria a serem tomadas atendendo, obrigatoriamente, a determinados factos, ou a serem tomadas de certa forma quando verificadas algumas circunstâncias, limitando assim a discricionariedade. Acresce ainda o princípio da legalidade e os princípios constitucionais aos quais estão obrigados os agentes administrativos.
   
   Feita esta breve introdução, há que comentar a divisão em torno desta questão: as correntes garantísticas não gostam naturalmente desta chamada margem de livre apreciação (a qual o Prof. Vasco Pereira da Silva repudia, alegando não ser livre em razão de vários argumentos, entre os quais se incluem as vinculações que apontei supra), considerando que constitui uma insegurança para o particular e para a prossecução do interesse público – não sustentam viável, naturalmente, a abolição da discricionariedade mas consideram-na um “mal necessário”, que quanto menor for, melhor será para todos; já outras opiniões vão no seguinte sentido: Rogério Soares – as leis “não podem ser a figuração abstracta, até ao milímetro, do que irá ser cada um dos actos administrativos, que apenas lhe acrescentam tempo, lugar e destinatários concretos; não podem ser leis-acto-administrativo-feito-nas-nuvens, à espera de que o administrador as puxe à Terra. Nestes novos domínios, o papel da lei é o de ser um instrumento director e ordenador duma decisão que cabe ao 2º poder”; Vieira de Andrade – “não é um mal necessário que deva ser reduzido ao mínimo, antes desempenha um papel positivo e indispensável, quer para a realização do interesse público, quer para a defesa adequada dos interesses dos particulares”.
   
   Sou plenamente a favor desta segunda corrente. Considero a margem discricionária um bem e não um mal.
   
   Em primeiro, o interesse público, a garantia do direito dos particulares, a solução mais justa, tem que ser aferida caso a caso. Um controlo maior da lei, em relação a actos que tenham que ser, forçosamente, bastante discricionários, não traria a segurança, antes a insegurança proporcionada pelas naturais diferenças que diferentes situações acarretam. Haveria a certeza de que as decisões seriam obrigadas a ser tomadas sempre num determinado sentido sim, mas isto substituiria aquilo que são decisões conformes à prossecução do interesse público por decisões simplesmente conformes à lei.
   
   Em segundo lugar, julgo estar, à partida, muito mais apto a tomar a correcta decisão o agente administrativo que trabalha correntemente em determinada área (por exemplo um arquitecto, em relação a atribuir autorizações de construção) do que o legislador, o que é reforçado com o facto de, na função pública, ser habitual a existência de carreiras longas. Antes de mais, devido ao facto de o despedimento ser uma impossibilidade legal.
   
   Em terceiro, a Administração merece crédito, sendo o que muitas vezes melhor funciona. Por exemplo, na Itália, citando o Prof. Vasco Pereira da Silva, “é a única coisa que funciona”.
  
  Em quarto, existem meios de controlo do exercício administrativo. O que, na minha opinião, legitima a atribuição desta “confiança” à Administração Pública – não deixa que haja arbitrariedade.
   
   Concluindo: julgo então que, não só a discricionariedade não deve ser restringida tanto quanto possível, como talvez haja áreas nas quais fosse benéfico ampliá-la (nas quais seja sensato e faça sentido, como é lógico). Deve-se não só zelar pela segurança, mas também ter em conta o facto de, por vezes, demasiada exigência legislativa poder asfixiar o trabalho de certos agentes, boicotando a qualidade de certas decisões.   


Manuel Leston Bandeira, nº 21475

Sem comentários:

Enviar um comentário