Tradicionalmente, entende-se que
a Administração celebra dois tipos de contratos: os contratos administrativos e
os contratos de direito privado (onde, simplificando, seriam aplicados dois
regimes jurídicos diferentes), que se inserem num conceito mais amplo de
contrato público (ou contratos da Administração). Segundo a posição que
defendemos no debate, a distinção entre contratos públicos e contratos
administrativos não se justifica. Esta posição, ainda que minoritária na
doutrina, é defendida por MARIA JOÃO ESTORNINHO, VASCO PEREIRA DA SILVA,
ALEXANDRA LEITÃO, MARCELO REBELO DE SOUSA, entre outros.
A noção de contrato
administrativo surgiu no contencioso francês, no início do séc. XX (a chamada
teoria francesa dos contratos administrativos). Mais concretamente, surgiu
durante um litígio que opunha um município e o seu concessionário de uma rede
de iluminação pública a gás. Ora, nessa altura, descobriu-se a electricidade,
pelo que o município exigiu ao concessionário que fornecesse serviços
eléctricos, visto que o interesse público assim o exigia. O concessionário
alegava que tal não constava do contrato e que, portanto, não estava obrigado a
tal. O Conselho de Estado francês deu razão ao município, afirmando que este
tinha o poder de modificar unilateralmente a relação contratual para uma melhor
prossecução do interesse público. Surgiu, assim, a ideia de que nem todos os
contratos celebrados pela Administração Pública são privados, visto que estes
chamados poderes de conformação não estavam previstos no Direito Civil.
Assim, de acordo com a nossa
posição, esta foi uma evolução histórica que se iniciou com este caso e avançou
até aos nossos dias, em que, do nosso ponto de vista, se assiste à unificação
do regime jurídico dos contratos da Administração (quer sejam tradicionalmente
classificados de administrativos ou privados). Para começar, a doutrina sempre
procurou encontrar um critério de distinção entre ambos os contratos: foram apresentados,
entre outros, os critérios da taxatividade legal, o da natureza dos sujeitos, o
das cláusulas de sujeição, o do direito estatutário, o do objecto do contrato,
o do fim. Como salienta MARCELO REBELO DE SOUSA, “nenhum é integralmente
satisfatório”. MARIA JOÃO ESTORNINHO realça a “inutilidade de um critério de
distinção”, insistindo na unificação do regime aplicável aos contratos
públicos. Tanto esta Autora como ALEXANDRA LEITÃO agarram-se ao critério da
prossecução do interesse público, dadas as consequências que essa prossecução –
inerente à participação da Administração nestes contratos – trará ao regime
aplicável (ponto que explicaremos mais à frente). Hoje, no actual Código dos
Contratos Públicos, o legislador adoptou um critério que também não satisfaz a
doutrina, dada a sua amplitude: a teoria dos índices de administratividade
(especialmente propugnada por PEDRO GONÇALVES), no artº 1/6 CCP.
Cumpre salientar que a noção de
contratos públicos surgiu com a Directiva nº 2004/17/CE, que vinha afirmar que
a qualificação como contrato administrativo ou contrato privado não era
critério relevante relativamente a uma parte do regime aplicável; o que
relevava era, sim, o facto de o contrato ter como objecto uma prestação
susceptível de estar submetida a concorrência de mercado. Quando tal se
verificasse, e por se tratar de dinheiros públicos, teria sempre de existir um
procedimento pré-contratual (a chamada procedimentalização da formação da
vontade da Administração), que consistia, por exemplo, no concurso público.
Ora, quem já antes defendia esta posição, ganhou novo fôlego. Desta perspectiva,
o procedimento pré-contratual (que atinge a maioria dos contratos da
Administração) publicizaria o contrato (mesmo que tradicionalmente qualificado
como privado), já que, entre outros aspectos, se durante o procedimento
pré-contratual houvesse lugar a um vício, esse vício afectaria o resto do
contrato (e seria um vício de Direito Administrativo).
O problema (re)surgiu quando o já
referido Código dos Contratos Públicos (2008) apareceu. O novo Código parecia
manter a diferença entre contratos administrativos e contratos privados, visto
que a sua Parte II (relativamente à formação dos contratos) seria aplicável aos
contratos públicos e a sua Parte III (relativamente ao regime substantivo)
seria aplicável somente aos contratos administrativos (admitindo, assim, a existência
de contratos da Administração que não os administrativos: os privados).
Contudo, na nossa opinião, tal não invalida a inexistência prática da
distinção. De facto, para além dos argumentos já avançados, ainda há um de
maior peso: aquilo a que MARCELO REBELO DE SOUSA refere como “a
administrativização dos contratos da Administração Pública”. De facto, o regime
entre os dois tipos de contratos (administrativos e privados) é praticamente o
mesmo, pois como todos estão no exercício da função administrativa (ou seja,
todos prosseguem o interesse público), todos estão sujeitos a “limites” de
Direito Administrativo. MARCELO REBELO DE SOUSA distingue três núcleos de
contratos: os primeiros, onde se verifica um grau mais amplo de aplicação do
direito administrativo; os segundos, onde se verifica um grau intermédio; e os
terceiros, onde se assiste a um grau mais restrito. Nos três, para além da já
referida fase pré-contratual comum, temos outros pontos de contacto. Para
começar, todos estão sujeitos aos princípios fundamentais da actuação administrativa
(que constam dos artsº 3-11 CPA e do artº266 CRP), assim como às demais normas
constitucionais relativa à actividade administrativa. Por exemplo, o direito de
audiência prévia (artº 267/5 CRP). Para além disto, relativamente ao regime
material aplicável, em todos os contratos da Administração existem os poderes
de conformação da relação contratual, que, entre outros aspectos, permite à
Administração a modificação unilateral da prestação ou a resolução. Além disto,
como salienta também MARCELO REBELO DE SOUSA, todas as normas de direito
privado eventualmente aplicáveis nunca serão aplicadas exactamente como tal,
visto que, na sua interpretação, devem ser teleológica e sistematicamente
mediadas pelos princípios e regras de direito administrativo. Para terminar, um
último argumento de peso: o ETAF, no seu artigo 4º, alíneas b), e) e f), adopta
uma noção de contratos públicos diferente da constante do CCP. Nesta medida,
submete à jurisdição dos tribunais administrativos – independentemente do
regime aplicável – os contratos da Administração. Assim, a distinção iniciada
no plano contencioso, termina com uma medida adoptada no mesmo campo.
Em conclusão, e após esta
resumida análise, a dualidade de regimes não é assim tão notória, pois as
principais especificidades dos tradicionalmente chamados contratos
administrativos decorrem da presença da Administração Pública e são, por isso,
comuns a todos os contratos. Na expressão de VASCO PEREIRA DA SILVA, estamos,
portanto, na presença de uma “dualidade conceptual esquizofrénica”, que não se
justifica.
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