domingo, 19 de maio de 2013

Direito de audiência prévia


Para começar, cumpre esclarecer o alcance do conceito de audiência prévia. Simplificadamente, o direito de audiência prévia (ou direito de audiência dos interessados) consiste no direito subjectivo concedido aos particulares considerados como interessados no procedimento administrativo, decorrente numa determinada altura, de participarem nesse mesmo procedimento. Ou seja, os particulares, através do exercício deste direito, têm a oportunidade de participar activamente – em vez de serem remetidos para o papel predominantemente passivo – na formação da vontade da Administração Pública. Desta maneira, a participação dos interessados revela-se um instrumento de protecção dos particulares e de colaboração destes com a Administração, na prossecução do interesse público.
A participação dos particulares no procedimento é garantida pelo artº8, 59º, 100º e 107º CPA. A audiência prévia dos interessados tem, como se disse, especial relevância na formação da vontade administrativa. Assim, este direito tem lugar não só na formação de actos e regulamentos administrativos como também na formação de contratos administrativos, como defende MARCELO REBELO DE SOUSA. De facto, o artº 59 CPA consagra um direito genérico de os particulares serem ouvidos (e, do outro lado, o correspondente dever da Administração), ao permitir que a autoridade administrativa proceda em qualquer fase do procedimento à audiência dos interessados. De facto, o direito de audiência pode ser considerado como uma concretização da regra do contraditório. Para VASCO PEREIRA DA SILVA, o dever de audição dos interessados por parte da Administração traz maior profundidade àquelas que considera ser as funções do procedimento administrativo: a função de legimitação pelo procedimento (aprofundada não só pelo direito de audiência como pelo direito genérico de participação, consagrado constitucionalmente no artº 268, assim como no artº 61 CPA), a função de criação de racionalidade, a função de manifestação e composição de interesses contrapostos e a função de tutela preventiva ou antecipada dos direitos. Aliás, é exactamente nesta última função que reside uma das principais vantagens da consagração deste direito (assim como da existência de um procedimento administrativo em geral): permite aos particulares salvaguardarem os seus direitos antes de serem lesados, antecipando a (possível) posterior impugnação e processo judicial que resultaria de uma tal violação. A audiência prévia dos interessados, para além da protecção administrativa, goza de protecção constitucional, nomeadamente no artº 268 CRP. De facto, é visto por JORGE MIRANDA como uma densificação do princípio da democracia participativa (constante do artº 9 CRP e o já referido artº 8 CPA).
 Relativamente à audiência prévia no acto administrativo, segundo os artigos 101º e 102º, esta pode realizar-se sob a forma escrita (em que o órgão instrutor deve notificar os interessados para se pronunciarem durante um prazo não inferior a 10 dias) ou sob a forma oral (em que os interessados devem ser convocados com, pelo menos, 8 dias de antecedência), respectivamente. O artº 103 consagra os casos em que não há lugar a audiência dos interessados (no seu número 1 – casos de inexistência) e os casos em que o órgão instrutor pode dispensar a audiência (no seu número 2 – casos de dispensa).
Na minha opinião, uma das mais interessantes questões acerca do direito de audiência prende-se com o seguinte ponto: o que acontece se, durante o procedimento administrativo do qual irá resultar um acto final, não houver lugar à audiência prévia dos interessados? Posto de outra maneira, qual é a sanção jurídica para a tomada de uma decisão sem audiência prévia (quando esta deveria ter tido lugar)? Em princípio, não se tratando de um caso do artº 133 CPA, o vício cairia no artº 135º, gerando anulabilidade, não afectando a produção de efeitos do acto até que este fosse impugnado. Contudo, a questão reside exactamente aqui: uma parte da doutrina considera que o direito de audiência prévia se trata de um direito fundamental, o que daria lugar à nulidade do acto, ex vi artº133/2/d) CPA; outra parte da doutrina considera que não se trata de um direito fundamental, e, por conseguinte, a sua falta geraria apenas a anulabilidade do acto administrativo, ex vi artº135 CPA.
Para FREITAS DO AMARAL, a preterição da audiência prévia dará lugar à mera anulabilidade do acto. Para este Autor, “os direitos fundamentais são apenas os direitos inerentes à dignidade essencial da pessoa humana”. Para além disto, FREITAS DO AMARAL baseia-se na jurisprudência administrativa, que se tem virado para a anulabilidade. De facto, este Autor refere que os tribunais se têm pronunciado pela anulabilidade nos casos da preterição da audiência do arguido em processo disciplinar. Assim, diz o Autor, se no caso mais grave de preterição de audiência dos cidadãos os tribunais se decidem pela anulabilidade, não será num caso menos grave como a preterição dos interessados no procedimento administrativo que haverá nulidade.
Todavia, para VASCO PEREIRA DA SILVA, o direito de audiência dos interessados é um direito fundamental. O Autor refere que com a passagem da Administração Pública a Administração prestadora e, posteriormente, a Administração de infra-estruturas, e, mais concretamente, com o aparecimento do conceito de relação jurídico-administrativa – em que o indivíduo é tratado como sujeito de direito nas relações com a Administração - observou-se um alargamento de direitos subjectivos no seio do Direito Administrativo que provêm dos Direitos Fundamentais, que colocam o particular “numa posição de igualdade (à partida) relativamente aos poderes públicos”. VASCO PEREIRA DA SILVA e FREITAS DO AMARAL falam no aparecimento do procedimento quadrifásico (por oposição ao procedimento tradicionalmente entendido como trifásico composto por iniciativa, instrução e decisão), visto que o CPA de 1991 consagrou, na opinião destes Autores, a obrigatoriedade da audiência prévia, o que corresponde a uma tutela antecipada dos direitos dos particulares. VASCO PEREIRA DA SILVA vai ainda mais além, afirmando que, mesmo que não se considere que o direito de audiência prévia não consubstancia um direito fundamental, “a não audiência do interessado implicaria sempre a violação de um direito fundamental, que seria agora não o direito de audiência (…) mas aqueloutro direito fundamental que fosse, em concreto, afectado por uma decisão administrativa (por exemplo, o direito de propriedade, o direito ao ambiente, o direito à saúde, etc.)” Também para MARCELO REBELO DE SOUSA, a preterição da audiência dos interessados conduz à nulidade do acto final. O Autor, contudo, toma outra via: considera a audiência dos interessados uma formalidade essencial, que constitui um elemento essencial de um acto administrativo, e que, deste modo, seria nulo por via do artº 133/1 CPA.
Na minha opinião, a razão está com VASCO PEREIRA DA SILVA. O direito de audiência prévia configura um direito fundamental, pelo que a sua preterição deve dar lugar à nulidade do acto em questão, ex vi artº 133/ CPA. Para mais, julgo que, contrariamente à jurisprudência, mesmo que admitíssemos que a preterição do dever de audição dos interessados por parte da Administração conduzisse à mera anulabilidade, dificilmente haveria lugar ao aproveitamento do acto jurídico, ou seja, dificilmente poderia esta preterição dar lugar a uma mera irregularidade. Para além do argumento enunciado por MARCELO REBELO DE SOUSA (acima referido), considero que a audição dos possíveis interessados – inclusive os cidadãos que possam não ter um direito lesado com a actuação da Administração mas que intervenham de qualquer maneira (o que, saliente-se, é permitido e encorajado pelo actual sistema jurídico) – pode dar lugar a uma alteração substancial da decisão administrativa. É impossível prever quais os interessados que compareceriam e quais as suas participações.  

Maria Madalena Narciso

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