Para começar, cumpre esclarecer o
alcance do conceito de audiência prévia. Simplificadamente, o direito de
audiência prévia (ou direito de audiência dos interessados) consiste no direito
subjectivo concedido aos particulares considerados como interessados no
procedimento administrativo, decorrente numa determinada altura, de
participarem nesse mesmo procedimento. Ou seja, os particulares, através do
exercício deste direito, têm a oportunidade de participar activamente – em vez
de serem remetidos para o papel predominantemente passivo – na formação da
vontade da Administração Pública. Desta maneira, a participação dos
interessados revela-se um instrumento de protecção dos particulares e de colaboração
destes com a Administração, na prossecução do interesse público.
A participação dos particulares
no procedimento é garantida pelo artº8, 59º, 100º e 107º CPA. A audiência
prévia dos interessados tem, como se disse, especial relevância na formação da
vontade administrativa. Assim, este direito tem lugar não só na formação de
actos e regulamentos administrativos como também na formação de contratos
administrativos, como defende MARCELO REBELO DE SOUSA. De facto, o artº 59 CPA
consagra um direito genérico de os particulares serem ouvidos (e, do outro
lado, o correspondente dever da Administração), ao permitir que a autoridade
administrativa proceda em qualquer fase do procedimento à audiência dos interessados.
De facto, o direito de audiência pode ser considerado como uma concretização da
regra do contraditório. Para VASCO PEREIRA DA SILVA, o dever de audição dos
interessados por parte da Administração traz maior profundidade àquelas que
considera ser as funções do procedimento administrativo: a função de
legimitação pelo procedimento (aprofundada não só pelo direito de audiência
como pelo direito genérico de participação, consagrado constitucionalmente no
artº 268, assim como no artº 61 CPA), a função de criação de racionalidade, a
função de manifestação e composição de interesses contrapostos e a função de
tutela preventiva ou antecipada dos direitos. Aliás, é exactamente nesta última
função que reside uma das principais vantagens da consagração deste direito
(assim como da existência de um procedimento administrativo em geral): permite
aos particulares salvaguardarem os seus direitos antes de serem lesados,
antecipando a (possível) posterior impugnação e processo judicial que
resultaria de uma tal violação. A audiência prévia dos interessados, para além
da protecção administrativa, goza de protecção constitucional, nomeadamente no
artº 268 CRP. De facto, é visto por JORGE MIRANDA como uma densificação do
princípio da democracia participativa (constante do artº 9 CRP e o já referido
artº 8 CPA).
Relativamente à audiência prévia no acto
administrativo, segundo os artigos 101º e 102º, esta pode realizar-se sob a
forma escrita (em que o órgão instrutor deve notificar os interessados para se
pronunciarem durante um prazo não inferior a 10 dias) ou sob a forma oral (em
que os interessados devem ser convocados com, pelo menos, 8 dias de
antecedência), respectivamente. O artº 103 consagra os casos em que não há
lugar a audiência dos interessados (no seu número 1 – casos de inexistência) e
os casos em que o órgão instrutor pode dispensar a audiência (no seu número 2 –
casos de dispensa).
Na minha opinião, uma das mais
interessantes questões acerca do direito de audiência prende-se com o seguinte
ponto: o que acontece se, durante o procedimento administrativo do qual irá
resultar um acto final, não houver lugar à audiência prévia dos interessados? Posto
de outra maneira, qual é a sanção jurídica para a tomada de uma decisão sem
audiência prévia (quando esta deveria ter tido lugar)? Em princípio, não se
tratando de um caso do artº 133 CPA, o vício cairia no artº 135º, gerando
anulabilidade, não afectando a produção de efeitos do acto até que este fosse
impugnado. Contudo, a questão reside exactamente aqui: uma parte da doutrina
considera que o direito de audiência prévia se trata de um direito fundamental,
o que daria lugar à nulidade do acto, ex
vi artº133/2/d) CPA; outra parte da doutrina considera que não se trata de
um direito fundamental, e, por conseguinte, a sua falta geraria apenas a
anulabilidade do acto administrativo, ex
vi artº135 CPA.
Para FREITAS DO AMARAL, a preterição
da audiência prévia dará lugar à mera anulabilidade do acto. Para este Autor, “os
direitos fundamentais são apenas os direitos inerentes à dignidade essencial da
pessoa humana”. Para além disto, FREITAS DO AMARAL baseia-se na jurisprudência
administrativa, que se tem virado para a anulabilidade. De facto, este Autor
refere que os tribunais se têm pronunciado pela anulabilidade nos casos da
preterição da audiência do arguido em processo disciplinar. Assim, diz o Autor,
se no caso mais grave de preterição de audiência dos cidadãos os tribunais se
decidem pela anulabilidade, não será num caso menos grave como a preterição dos
interessados no procedimento administrativo que haverá nulidade.
Todavia, para VASCO PEREIRA DA
SILVA, o direito de audiência dos interessados é um direito fundamental. O Autor
refere que com a passagem da Administração Pública a Administração prestadora
e, posteriormente, a Administração de infra-estruturas, e, mais concretamente,
com o aparecimento do conceito de relação jurídico-administrativa – em que o indivíduo
é tratado como sujeito de direito nas relações com a Administração - observou-se
um alargamento de direitos subjectivos no seio do Direito Administrativo que
provêm dos Direitos Fundamentais, que colocam o particular “numa posição de
igualdade (à partida) relativamente aos poderes públicos”. VASCO PEREIRA DA
SILVA e FREITAS DO AMARAL falam no aparecimento do procedimento quadrifásico
(por oposição ao procedimento tradicionalmente entendido como trifásico
composto por iniciativa, instrução e decisão), visto que o CPA de 1991
consagrou, na opinião destes Autores, a obrigatoriedade da audiência prévia, o
que corresponde a uma tutela antecipada dos direitos dos particulares. VASCO
PEREIRA DA SILVA vai ainda mais além, afirmando que, mesmo que não se considere
que o direito de audiência prévia não consubstancia um direito fundamental, “a não
audiência do interessado implicaria sempre a violação de um direito
fundamental, que seria agora não o direito de audiência (…) mas aqueloutro
direito fundamental que fosse, em concreto, afectado por uma decisão administrativa
(por exemplo, o direito de propriedade, o direito ao ambiente, o direito à
saúde, etc.)” Também para MARCELO REBELO DE SOUSA, a preterição da audiência
dos interessados conduz à nulidade do acto final. O Autor, contudo, toma outra
via: considera a audiência dos interessados uma formalidade essencial, que
constitui um elemento essencial de um acto administrativo, e que, deste modo,
seria nulo por via do artº 133/1 CPA.
Na minha opinião, a razão está
com VASCO PEREIRA DA SILVA. O direito de audiência prévia configura um direito
fundamental, pelo que a sua preterição deve dar lugar à nulidade do acto em questão,
ex vi artº 133/ CPA. Para mais, julgo
que, contrariamente à jurisprudência, mesmo que admitíssemos que a preterição do
dever de audição dos interessados por parte da Administração conduzisse à mera
anulabilidade, dificilmente haveria lugar ao aproveitamento do acto jurídico,
ou seja, dificilmente poderia esta preterição dar lugar a uma mera
irregularidade. Para além do argumento enunciado por MARCELO REBELO DE SOUSA
(acima referido), considero que a audição dos possíveis interessados –
inclusive os cidadãos que possam não ter um direito lesado com a actuação da
Administração mas que intervenham de qualquer maneira (o que, saliente-se, é
permitido e encorajado pelo actual sistema jurídico) – pode dar lugar a uma alteração
substancial da decisão administrativa. É impossível prever quais os
interessados que compareceriam e quais as suas participações.
Maria Madalena Narciso
ótimo texto, mas cadê as referências bibliográficas?
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